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A Dependência Química e seus Tratamentos

Para dar o primeiro passo, o dependente precisa ter consciência do seu estado, determinação de que precisa sair dele e apoio profissional. "É uma doença", define o Gerente Geral Médico da Fundação, Dr. Paulo Magalhães, "que deve ser encarada e tratada como tal".

Nesta entrevista, os três profissionais apresentam as diferentes formas de dependência química, incluindo o tabaco, que só recentemente foi reconhecido como tal pela Organização Mundial da Saúde, como reconhecer os indícios e que atitude assumir quando alguém de suas relações tiver este tipo de problema.


SINAIS DE ALERTA PARA A IDENTIFICAÇÃO DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA

* Ausências e atrasos constantes no trabalho
* Afastamento do seu posto de trabalho mais que o necessário
* Alto índice de acidentes (dentro e fora do trabalho)
* Pouca eficiência no trabalho
* Dificuldade de concentração nas atividades
* Mudança repentina de comportamento
* Descuido em sua apresentação pessoal


ELOS - Existe alguma estatística de quantas pessoas usam drogas no Brasil?

Dr. Haendel Ambrósio – Só são conhecidos os números de quem abusa ou tem dependência de álcool, medicamentos ou drogas ilícitas: aproximadamente 10% de qualquer contingente populacional, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, pulverizados em todos os níveis sociais. O uso eventual não tem registro.

Dr. Paulo Magalhães – Se considerarmos o tabaco, esse número sobe para 20%.

ELOS - O que transforma um usuário em dependente?

Dr. Haendel – Há uma predisposição para que a pessoa faça o processo, desde o uso experimental até chegar à dependência química, e isto tem origem na integração das variáveis que nos faz ser como somos, ou seja, no biológico,no psicológico e no social. Este mix nos colocará ou não naqueles 10% da população que não conseguirá parar de usar a droga.

Dr. Paulo – Esses três momentos, de uso, abuso e dependência, não são estanques. São um processo contínuo, com fronteiras muito sutis entre um do outro.

Patrícia Marinho – E o maior problema é que o dependente não percebe sua condição, por isso é chamada de "doença da negação". E aí ele acha que todos os que vêm falar sobre isso - família, amigos - estão errados.

Dr. Paulo – Uma coisa pouco discutida é que a droga proporciona prazer para o usuário, senão ninguém consumiria. Ela traz um bem-estar imediato e de curta duração. Há uma postura errada e até contraproducente dos pais, quando dizem que a droga é ruim, sem maiores explicações. A partir do momento que ele experimenta as sensações momentâneas que a droga produz, vai pensar: "eles não sabem nada sobre isso", e deixa de tê-los como referência na questão.

Dr. Haendel – Consumir drogas ou álcool para ajudar estados emocionais é muito freqüente. Há pessoas que são retraídas, contidas e têm dificuldades na interrelação e que usam álcool para se liberar; outras que são apáticas usam a cocaína para ganhar agilidade, energia ou ficarem mais produtivas. Também existem pessoas que são agitadas e tensas que encontram a tranqüilidade em substâncias como calmantes ou maconha. Isto ocorre pela crença de que somos impotentes para a mudança destes perfis, são os chamados “monstros de isopor”, que nós mesmos criamos e que passamos a vida temendo pelo simples medo de mudar ou de simplesmente, pedir ajuda especializada para a superação destas limitações.

ELOS - É comum o uso simultâneo de diferentes tipos de psicotrópicos?

Patrícia – É muito constante, é o que chamamos de dependência casada. Em quase todos os casos que chegam ao atendimento, o paciente usa o álcool mais alguma outra substância, tendo começado pelo álcool, migrando gradativamente para o uso de cocaína ou crack.

ELOS - Como se dá o processo de cura?

Dr. Paulo – Não há cura. Nos casos graves, é necessária uma desintoxicação e após isso é que se faz um tratamento diário, contínuo, uma vez que há uma predisposição do paciente. É como a postura dos Alcoólicos Anônimos, em que o indivíduo se declara sóbrio durante aquele dia. Cada dia é uma conquista.

Patrícia – O tratamento é muito difícil, porque deve alterar radicalmente os hábitos diários, não só da pessoa, como de todo o seu grupo de convivência. Não é comum você ouvir que a família se muda de casa, até de cidade quando tem um viciado em casa? É um movimento que não adianta nada se não houver uma modificação completa na rotina de todos as pessoas do grupo. Em praticamente todos os casos, a família também está doente, e precisa ser tratada ao mesmo tempo.

Dr. Haendel – Outro fator fundamental é o usuário querer se tratar. Ele tem que perceber que está no fundo do poço e tem que se mobilizar para sair de lá. O tratamento não é fácil, às vezes depende de internação, e o melhor é que ocorra com o querer do paciente, do contrário, nos limitamos a realizar processo de desintoxicação – uma limpeza do sangue contaminado pelas drogas – e não conseguimos trabalhar a mudança de atitude do paciente. Só se opta por internação à revelia quando for para evitar conseqüências irreversíveis. A clara percepção de seu real comprometimento é essencial para o paciente, e a ajuda da família para que esta percepção ocorra é fundamental.

Patrícia – Se a família busca essa pessoa, leva para casa, dá banho e ela acorda limpa, na sua cama, não terá a dimensão do seu problema. Na maioria dos casos, porém, ela procura superproteger o dependente, e isso vai realimentar sua doença. Como este não percebe conseqüências, não tem uma atitude crítica em relação a si mesmo. Por isso, é necessário o apoio profissional, que irá estabelecer as regras do tratamento do paciente, e que devem envolver todas as pessoas da casa. A família também está doente e precisa se tratar junto com ele.

Dr. Paulo – A verdade é que ninguém muda uma postura se não houver uma perda ou um ganho. Se você for candidato a uma promoção, certamente vai tentar melhorar seu desempenho; mas se você não se sentir ameaçado, provavelmente não vai abandonar um vício.

ELOS - A dependência química também é uma doença melhor combatida quando tratada precocemente?

Dr. Haendel – Claro. A probabilidade de recuperação é maior, o comprometimento orgânico, dependendo do caso, ainda poderá ser recuperado. Mas o melhor, realmente, é a prevenção, é não entrar no poço.

Patrícia – É uma doença de preconceitos, a família, principalmente, não quer perceber e depois não quer que os outros percebam a condição desta pessoa. A própria sociedade até recentemente não considerava um alcoólatra ou usuário de drogas como doente. Era um desvio de caráter, coisa assim. Com a postura que hoje existe em relação ao problema, além de se tratar com mais propriedade essas pessoas, surgiu um novo desafio: a prevenção.

Dr. Paulo – É necessário que haja um programa de educação continuada para disseminar o conhecimento do que é a dependência química que alcance não apenas usuários ou potenciais usuários, mas também seus grupos de convivência para que estes reconheçam e saibam como administrar o problema. Há, entretanto, um problema adicional: em paralelo a todos os esforços em combater vícios e recuperar viciados, há códigos sociais velados que valorizam o uso de drogas ou álcool. Jovens tacham de careta quem não usa drogas; adultos usam de ironia com quem não bebe em festas.

Dr. Haendel – Isso lembra uma forma freqüente de chegar à dependência ao álcool. Existe aquele sujeito que, em festas, bebe pouco inicialmente e fica servindo os outros, mais adiante leva para casa aqueles que se excederam, incentivando que continuem bebendo, e minimiza o problema: chamando de “cervejinha”, “uisquinho”, “cachacinha”... Esse indivíduo começa a tomar pequenos goles, depois a ter bebidas para servir em casa, toma uma dose de vez em quando, sempre mantendo a bebida por perto, até que o hábito se torna diário e, quando percebe, não consegue parar de beber.

ELOS - Como as empresas encaram a presença de um dependente entre os seus funcionários?

Patrícia – A política da Fundação e das empresas do Grupo FRB-Par é investir na recuperação do beneficiário, o que inclui a família, e não só para o trabalho, mas para a vida.

Dr. Haendel – E é muito caro selecionar e treinar um funcionário, e uma simples demissão por justa causa - que está prevista na CLT – não garante que o seu substituto não traga problemas semelhantes. Um dependente apoiado pela empresa durante sua recuperação poderá ter um grau de comprometimento com o trabalho maior do que tinha antes.

Dr. Paulo – Quando este funcionário começa a transparecer seu problema no ambiente de trabalho, é porque seu estágio está avançado e em casa a família já está destruída. O trabalho é a última coisa que ele quer perder. A família, mal ou bem, joga no seu time.

ELOS - Como se reconhece um dependente químico neste ambiente?

Dr. Haendel – Há uma série de sinais, entre eles destacamos: faltas constantes, especialmente em certos dias da semana, acidentes do trabalho freqüentes, queda na qualidade da produção, aumento do nível de estresse no ambiente de trabalho gerando com isto, queda da qualidade do produto final.

Patrícia – No caso da cocaína, há um sintoma inverso: se desencadeia no funcionário um processo temporário de maior produtividade, enquanto o organismo agüenta. É comum um usuário ter alterações de comportamento: uma hora está apático, momentos depois está ativo.

Dr. Haendel – Há um momento em que o dependente de álcool procura contaminar seu grupo para justificar o hábito. Marca uma partida de futebol no final do expediente, já convidando para uma cervejinha depois. Marca reuniões na hora do almoço, sempre incluindo bebidas. Por isso é necessário um esclarecimento no ambiente de trabalho. Ao identificar precocemente estes e outros indícios, os colegas devem encaminhá-lo para atendimento médico – seja através da chefia, seja diretamente, se houver receptividade por parte da pessoa.

Dr. Paulo – Normalmente, o primeiro a notar esses indícios é um outro dependente ou ex-dependente, pois conhece os mecanismos de que se lança mão para conseguir tomar mais uma dose. E, como os grupos costumam proteger o colega que tem esse problema, o primeiro a saber é o primeiro a esconder. Isso até que a situação esteja prejudicando a todos, o tempo todo.

Dr. Haendel – Essa situação só pode mudar através de uma mudança total na cultura, tanto nas empresas como na família. Diante de um problema desses, não cabe mais uma postura de polícia e ladrão ou esse corporativismo que só traz prejuízos à empresa, ao grupo e ao funcionário.

ELOS - Há alguma coisa que a empresa possa fazer para identificar mais rapidamente esse funcionário?

Dr. Haendel – A postura deve estar baseada no tripé da prevenção, tratamento e reabilitação com ênfase na prevenção – a reabilitação significa mais do que apenas recuperar, mas reintegrar ao grupo e ao trabalho – o adicto ao perceber que há uma porta de entrada, um acolhimento ético, procurará auxílio com maior brevidade e será muito mais receptivo a um tratamento.

Patrícia – Isso não quer dizer proteção incondicional. O paciente tem que querer se tratar, tem que seguir regras, cumprir metas. Muita gente usa o tratamento como muleta, justificativa para um desempenho insatisfatório, e não evolui na sua recuperação.

ELOS - No âmbito da Fundação e das empresas do Grupo FRB-Par, o que existe neste sentido?

Patrícia – Não temos um programa formal, ainda, mas todos os casos são atendidos e acompanhados até o final. Infelizmente por causa da demora para chegar até nós, há um índice ainda baixo de reabilitação e um índice alto de mortes.

Dr. Paulo – Nós filiamos a Fundação e a VARIG à Associação Internacional de Companhias Aéreas com Programas de Assistência aos Funcionários, que discute programas de recuperação de dependentes, e eles ficaram fascinados com a nossa atuação. O que para eles, lá nos Estados Unidos, são programas moderníssimos de atendimento, para nós é rotina há muitos anos. Eles também se interessam muito pela variedade de programas de atendimento médico e social que realizamos.

Dr. Haendel – Eles até comentam, admirados: "o que nós fazemos por força de Lei, vocês fazem espontaneamente".

Dr. Paulo – Isso é importante: nos Estados Unidos é obrigatório programas de controle da dependência química e em breve nós vamos ser obrigados a apresentar os nossos, se quisermos pousar em determinados aeroportos. A aviação é uma indústria global e a partir do 11 de setembro, cresceu o nível de exigência quanto à segurança. A Embraer, por exemplo, teve que implantar programas baseados nos critérios americanos para poder vender aeronaves e manutenção. A Petrobras também foi obrigada a desenvolver programas semelhantes após o acidente do Exxon Valdez, na costa do Alaska.

ELOS - Um programa desse nível deve envolver algum tipo de controle permanente.

Dr. Paulo – A testagem de drogas na urina ou no cabelo é de grande valia fornecendo um dado concreto em torno do qual se pode basear um trabalho preventivo. São vários os momentos em que pode haver uma testagem: na admissão ou na promoção do funcionário; após algum acidente ou incidente; durante o período de reabilitação de um dependente já conhecido; por aquilo que se chama "razoável suspeita", ou seja uma série de indícios que levam a chefia a encaminhá-lo para o Serviço Médico; e por amostragem aleatória, que ainda possui alguns limites legais.

Patrícia – As pessoas podem se sentir atingidas em sua privacidade, e pela Constituição ninguém tem que produzir provas contra si mesmo. Mas as empresas podem definir uma política de pessoal que conste no Contrato de Trabalho e torne essa testagem obrigatória.

Dr. Haendel – Há várias formas de identificar a presença de álcool ou drogas no organismo, através do sangue, da urina e dos cabelos entre outras. A Fundação, seguindo uma política de Star Alliance, utiliza apenas a técnica do cabelo. Como o couro cabeludo é muito irrigado, o sangue deixa traços das drogas na matriz de cada fio de cabelo. Isso cria uma espécie de filme que mostra uma janela de 90 dias que dá o perfil de uso da droga daquela pessoa.

Dr. Paulo – Na VARIG nós fizemos este teste em 200 pessoas, e encontramos quatro positivos, que já foram encaminhados para tratamento. Hoje, à Fundação aplica, a VARIG pode acompanhar seus funcionários, tratando e reabilitando.

ELOS - A posição das empresas do Grupo FRB-Par é sempre de promover sua reabilitação?

Dr. Haendel – Sempre. Mas há um limite, que é a vontade do funcionário de sair do estado em que se encontra. Não adianta ficar dando inúmeras oportunidades, porque aí você estará fazendo o jogo do dependente.

Patrícia – É muito importante frisar que na atuação da Fundação Ruben Berta existe uma grande preocupação com a proteção do beneficiário. Se o dependente chega até nós através da família, sua chefia nunca vai ficar sabendo. Além disso, atendemos também os dependentes do filiado com o mesmo cuidado. Afinal, para chegar a solicitar ajuda, foi preciso que vencessem seu próprio preconceito. É uma pena que na maioria das vezes essa comunicação seja tardia. As pessoas precisam se conscientizar que a dependência química mata.

Dr. Paulo – No grupo de vôo há coisas que dificultam a disseminação de álcool e drogas, como a disciplina caracteristica dos aeronautas. Mas há facilitadores, como o pernoite, a solidão, as viagens internacionais, o álcool a bordo... Aqui cabe um comentário: alguns alegam que o problema ocorre na sua vida particular e que não cabe à empresa interferir. Se os hábitos pessoais de determinado funcionário prejudicam sua atuação profissional, a empresa pode fazer um esforço para ajudá-lo a se recuperar. Mas, ao mesmo tempo, ela não pode permitir que o problema implique em riscos para o seu patrimônio, clientes ou demais funcionários.

ELOS - O atendimento é feito inteiramente na Fundação?

Dr. Paulo – A Fundação diagnostica o problema e encaminha para centros de desintoxicação e terapia. Hoje em dia, sabe-se que a terapia em grupo tem um alto grau de eficiência e isso também fez proliferar centros não-médicos - como associações de ex-dependentes e igrejas - que tem algum sucesso. A experiência dos Alcoólicos Anônimos e similares demonstrou que estes grupos informais são capazes de manter a estabilidade do ex-dependente.

Patrícia – Não se pode minimizar o papel da fé nesse esforço. Não apenas nas igrejas, como também nos 12 Passos dos AA, que são copiados por outros grupos, a idéia de um poder superior dá muita segurança ao doente.

Dr. Haendel – Na verdade, estes grupos dão um suporte afetivo muito forte para o paciente e oferecem esse apoio como moeda de troca pelo prazer que as drogas lhe proporcionam.

ELOS - Hoje em dia o tabaco é considerado uma droga. Em quê ele se parece com os psicotrópicos?

Dr. Paulo – Em primeiro lugar, trata-se de uma das dependências químicas mais difíceis de tratar. Apesar de hoje haver alguma reação social, o fumante normalmente não é uma pessoa inconveniente, que tenha seu comportamento radicalmente alterado pelo uso do cigarro. Porém, graças a esse crescimento das restrições, das campanhas do governo e especialmente dos grupos familiares, começa a haver uma busca por um tratamento.

Dr. Haendel – Assim que a lei proibindo o fumo a bordo foi promulgada, houve um bom número de aeronautas fumantes nos procurando para perguntar o que fazer. Todos os que nos procuraram, foram atendidos e acompanhados. Dependentes de álcool, drogas ou tabaco têm na Fundação um apoio profissional comprometido com sua recuperação. Se a pessoa não quiser sair do problema deverá, como em tudo na vida, assumir suas responsabilidades. Se a pessoa quiser realmente ficar fora da dependência nós, de forma ética, sem que esta seja exposta, estaremos com ela. Fonte: Fundação Ruben Berta